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sexta-feira, setembro 01, 2006

Co-incineração

Ao ouvir as imensas declarações que circulam nos mass media acerca da co-incineração, fico estupefacta com a quantidade de experts que existem, no nosso país, em tratamento de resíduos, ouso-me mesmo a dizer que existirão mais experts nesse assunto, que treinadores de bancada!

Há 14 anos que me interrogo qual é o destino a dar às toneladas de resíduos industriais perigosos que se produzem anualmente no nosso país. Mas, por incrível que pareça, continuo sem resposta e os resíduos continuam a ser, atirados para o mar, para o quintal do vizinho, para onde quer que seja, por industriais pouco escrupulosos.
O risco real é deixar os resíduos abandonados no ambiente.


Primeiro veio a ideia da incineração dedicada
Mudou o governo, mudou a política, concluiu-se pela inexistência de resíduos suficientes para manter a central de incineração a funcionar exclusivamente com resíduos nacionais, e como somos orgulhosamente sós, nunca importaríamos resíduos.

Depois passou-se ao projecto de co-incineração
Não haveria necessidade de construir uma fábrica de raiz e os resíduos seriam valorizados energeticamente. A co-incineração é um processo que consiste na utilização de resíduos industriais perigosos (RIP) como combustível alternativo em cimenteiras, havendo dessa forma uma eliminação destes e um aproveitamento do seu potencial energético no fabrico de cimento. Mas porque em Portugal, acima de tudo se tomam decisões políticas e não técnicas, mais uma vez o processo foi parado.
Porque se trata de uma questão séria, aqui fica uma opinião avalizada, de Sebastião Formosinho, professor catedrático do Departamento de Química da Universidade de Coimbra e presidente da extinta Comissão Cientifica Independente (CCI) que em 2002 emitiu um parecer sobre a co-incineração de resíduos perigosos nas cimenteiras.
Sebastião Formosinho considera que, dentro do que é um risco, este é um processo normal, seguro e relativamente controlado, praticado há mais de 20 anos. É claro que é necessário ter alguns cuidados, nomeadamente no que toca à incineração de metais pesados, já que o cimento final resultante não deverá ter valores mais elevados do que os encontrados normalmente numa rocha natural, mas passa tudo por uma boa gestão do processo.
É verdade que as primeiras práticas de co-incineração nos EUA foram incorrectas e tinham alguns problemas. Havia mistura dos resíduos que entravam na cimenteira e eram queimados em bidões, não havendo qualquer controlo, o que levou à produção de dioxinas. Esta foi, aliás, uma das questões empoladas na discussão do processo em Portugal, a saber, a quantidade produzida pelas lareiras.
Na União Europeia (UE), actualmente, sabe-se que 76% das dioxinas advêm desta prática e, como estão no ar, têm uma perigosidade acrescida porque se movimentam mais livremente e podem ser respiradas, entrando facilmente nos organismos vivos.
Hoje em dia, esses problemas estão ultrapassados. O processo sofreu grandes melhorias e é altamente controlado, havendo uma preparação dos resíduos de forma a torná-los homogéneos. As próprias empresas, agora, guiam-se por melhores práticas ambientais e existem licenças para gestores de resíduos que obedecem a critérios como o seu aproveitamento e o controlo de emissões, fomentando, inclusive, uma certa transparência perante o público.
Tendo em conta que o negócio das cimenteiras é o cimento, se as obrigam a utilizar como combustível alternativo os RIP e lhes dizem para cumprir determinados critérios, as empresas tentarão cumpri-los desde que isso não prejudique a sua laboração.
Por exemplo, no caso das incineradoras hospitalares só se sabe se estão a funcionar bem ou mal medindo as suas emissões. Nas cimenteiras, esse problema não se põe. Se a temperatura for mais baixa não se fabrica cimento. Por isso é que as cimenteiras foram escolhidas noutros países industrializados. São a indústria ideal para a destruição e aproveitamento energético destes resíduos.
Um dos problemas das cimenteiras era as poeiras. Quando havia uma acumulação de monóxido de carbono o filtro electrostático abria e todo o pó de cimento retido saía nessa altura. Agora, o filtro de mangas que está a seguir em série ao filtro electrostático evita esse problema. Para além disso, ao longo destes quatro anos as cimenteiras evoluíram no sentido de melhor cumprir os seus requisitos e de ter certificações industriais e ambientais.
A escolha de Souselas e Outão foi a escolha da altura. Hoje qualquer cimenteira deve poder utilizar combustíveis alternativos a partir de resíduos. É preciso começar por algum lado; escolheram-se duas unidades para garantir que, pelo menos, uma estaria sempre em serviço. Os critérios de selecção passaram pelo facto de Souselas ser a cimenteira mais recente, prevendo-se, por isso, que teria melhores condições, enquanto Outão tem excelentes parâmetros de desempenho industrial e ambiental.
Julgo que quando o processo se tornar mais familiar, as cimenteiras, do ponto de vista energético, terão interesse em queimar biomassa até porque isso lhes descontaria em parte o efeito de estufa. A co-incineração de biomassa implica, no entanto, pequenas alterações ao nível da cimenteira e um mercado estabelecido de limpeza de florestas e transformação destes resíduos em biomassa, sendo depois transportados até ao seu destino de incineração.
Várias foram as vozes que se levantaram contra o facto de o Governo ter decidido não fazer mais nenhum estudo de impacto ambiental. Foi nomeadamente o caso da Câmara de Coimbra. Este estudo não é necessário. Isso lembra-me a imagem do Aquiles atrás da tartaruga, já que se pedirmos constantemente estudos ambientais, o risco que pretendemos evitar - que é o do RIP não ser tratado - vai continuar a existir e a acumular-se. O problema está em debate há uma década.
Só se pode discutir esta questão em termos mais científicos e quando a CCI trabalhou, tentou de alguma forma tornar este processo transparente e disponibilizar informação via Internet para que as pessoas pudessem perceber melhor do que se trata, de modo a evitar o medo do desconhecimento.
As cimenteiras, ao co-incinerar, não estão, pois, a mudar de ramo de actividade mas apenas a utilizar um combustível alternativo. As co-incineradoras estão a exercer a actividade normal mas a usar um combustível alternativo, os RIP.

A comissão cientifica independente foi extinta pelo ministro do Ambiente da altura, Isaltino Morais. Quando foi constituída, foi-lhe pedido para realizar um parecer cientifico sobre a co-incineração e, caso esta fosse considerada prejudicial, a CCI tinha poder para impedi-la. Tal não foi o caso. Quando a CCI foi extinta o novo governo começou a falar nos CIRVER, o que não é uma alternativa completa.
Os CIRVER estavam a propor pôr alguns resíduos com conteúdo calorífico em aterros e o problema é que, actualmente, o conhecimento ambiental indica que esta situação se deve evitar devido aos problemas que dela advém, pois é muito mais difícil garantir a sua estabilidade.

A CCI sempre foi a favor de se proceder a um rastreio epidemiológico de forma a avaliar o estado geral da população em Souselas e, no futuro, de ter um termo de comparação. Houve, no entanto, pouco apoio por parte dos responsáveis de saúde e embora se tenha chegado a fazer alguns inquéritos, nunca foram feitas análises físicas e químicas.
A meu ver, seria importante, por exemplo, medir as dioxinas presentes no leite materno e fazer outros estudos mais aprofundados. Penso não haver, de facto, riscos acrescidos de saúde para as pessoas, pelo menos não mais do que aqueles que já existem com a cimenteira a laborar. Parece-me que por parte dos directamente envolvidos não houve grande vontade de avançar com estes estudos e, por isso, eles não foram aprofundados.

É possível que houvesse outros meios de resolver o problema mas o que eu digo é que em Espanha se começou a falar dele ao mesmo tempo e, lá, já estão tranquilamente a co-incinerar.
Há aspectos sociais diferentes mas que são empolados e também houve aspectos ambientais e políticos que dificultaram a questão. Por exemplo, quando o governo PSD previu a incineradora dedicada de resíduos em Estarreja e posteriormente se concluiu que não haveria um volume de RIP suficiente e necessário para o trabalho eficiente desta, os grupos ambientalistas, incluindo a Quercus, apontaram a co-incineração como a melhor solução.
E actualmente, por exemplo, a Quercus está numa posição mais tranquila com os CIRVER que garantem que 80% dos resíduos são recuperados. Penso que deverá ser assim. É preciso ver que muitos dos nossos problemas se prendem com o facto de não haver um volume de resíduos suficiente para se criarem tratamentos de recuperação dedicados. Não temos uma dimensão de mercado e isso é um problema que nos escapa. Assim, parece-me importante que, pelo menos, esta energia que pode advir dos RIP não seja perdida.

Em suma: a co-incineração não representa um risco real para Coimbra e Souselas. O risco real é deixar os resíduos abandonados no ambiente. Pode estimar-se, por absurdo, que se todos os resíduos que não eram co-incinerados fossem descontroladamente destruídos, em termos de dioxinas o valor seria cerca de três mil vezes superior. Esse é que é o verdadeiro risco.
Os estudos foram feitos e para além do impacto que a cimenteira tem por si só, a co-incineração não irá aumentar a emissão de poluentes nem de poeiras e esta é a indústria que dá menos problemas e onde o processo se estabeleceu melhor.
Vendo as coisas por um outro prisma, a co-incineração até já melhorou a vida das pessoas que viviam perto das cimenteiras, uma vez que quando começaram os primeiros estudos se concluiu ser necessário aplicar filtros de mangas nas chaminés. Actualmente já todas as cimenteiras têm, o que contribuiu para que os telhados das casas pretos e a poeira constante no ar desaparecessem.